português (portugais)

Mappemonde mettant en évidence le Japon.

A Aurora do Japão Medieval nas suas Epopeias

Tra­du­zido do fran­cês

O pa­cí­fico pe­ríodo de Heian (794-1185) ter­mi­nou numa con­fla­gra­ção. Ao tér­mino de ba­ta­lhas de rara vi­o­lên­cia, duas ca­sas ri­vais, os Taïra e os Mi­na­mo­to, afas­ta­ram, uma após a ou­tra, a aris­to­cra­cia de cor­te, que não dis­pu­nha nem de um exér­cito nem de uma po­lí­cia su­fi­ci­en­tes, e pro­vo­ca­ram o ad­vento do re­gime feu­dal. Co­meça en­tão a Idade Mé­dia ja­po­ne­sa. Este pe­ríodo de con­vul­sões foi tal que «se­ria pre­ciso pro­cu­rar na Idade Mé­dia alemã para en­con­trar uma con­fu­são se­me­lhante». Ao re­fi­na­mento da li­te­ra­tura fe­mi­nina de Heian su­ce­de­ram, desde en­tão, re­la­tos vi­ris, cheios de «assassínios», de «ardis», de «fei­tos de ar­mas ma­ra­vi­lho­sos» e de «vin­gan­ças lon­ga­mente pre­pa­ra­das» — «fonte de em­ba­raço e de per­tur­ba­ção para os his­to­ri­a­do­res».

O Rosário na Mão e a Espada à Cintura

Desta agi­ta­ção nas­ce­ram os «di­tos guer­rei­ros» (gunki mo­no­ga­tari), que se si­tuam no cru­za­mento da cró­nica his­tó­ri­ca, da epo­peia na­ci­o­nal e de uma pro­funda me­di­ta­ção bú­di­ca. A sua fun­ção era aliás me­nos li­te­rá­ria, no sen­tido em que o en­ten­de­mos, do que me­mo­rial e es­pi­ri­tu­al: tra­ta­va-se an­tes de mais «de apa­zi­guar […] as al­mas dos guer­rei­ros que pe­re­ce­ram nos com­ba­tes» e, para os so­bre­vi­ven­tes, «de pro­cu­rar um sen­tido aos acon­te­ci­men­tos caó­ti­cos que pu­se­ram fim à or­dem an­tiga». Esta fun­ção ca­bia aos «bon­zos de biwa» (biwa hôshi ou biwa bôzu), ae­dos ge­ral­mente ce­gos. Se­me­lhan­tes aos nos­sos tro­va­do­res de ou­tro­ra, per­cor­riam o país, de­cla­mando com voz can­tante os gran­des fei­tos do pas­sa­do. Ves­ti­dos com um há­bito mo­na­cal, sem dú­vida para se co­lo­ca­rem sob a pro­te­ção dos tem­plos e dos mos­tei­ros, acom­pa­nha­vam-se do seu alaúde de qua­tro cor­das, o biwa1«Nas­cido no reino da Pér­sia e suas re­giões li­mí­tro­fes, o biwa di­fun­diu-se na Ásia ori­en­tal ao longo da Rota da Se­da. Aper­fei­ço­ado na Chi­na, che­gou ao ar­qui­pé­lago ja­po­nês por volta do sé­culo VIII». Hyôdô, Hi­ro­mi, «Les moi­nes jou­eurs de biwa (biwa hôshi) et Le Dit des Heike» («Os Mon­ges To­ca­do­res de biwa (biwa hôshi) e O Dito dos Heiké») em Bris­set, Clai­re-A­ki­ko, Bro­tons, Ar­naud e Stru­ve, Da­niel (dir.), op. cit., cu­jos acor­des pon­tu­a­vam a me­lan­co­lia do re­la­to.

No co­ra­ção do re­per­tó­rio que es­tes ar­tis­tas trans­mi­tiam de mes­tre a dis­cí­pu­lo, uma tri­lo­gia fun­da­men­tal re­traça as lu­tas fra­tri­ci­das que fi­ze­ram bas­cu­lar o ar­qui­pé­lago numa nova era: O Dito de Hô­gen (Hô­gen mo­no­ga­tari)2For­mas re­jei­ta­das:
Ré­cit des trou­bles de l’ère Ho­gen (Re­lato dos Dis­túr­bios da Era Hô­gen).
La Ch­ro­ni­que des Ho­gen (A Cró­nica dos Hô­gen).
Ré­cit de l’ère Hô­gen (Re­lato da Era Hô­gen).
His­toire de la guerre de l’é­po­que Hô­gen (His­tó­ria da Guerra da Época Hô­gen).
Hôghen mo­no­ga­tari.
Hôghenn mo­no­ga­tari.
, O Dito de Heiji (Heiji mo­no­ga­tari)3For­mas re­jei­ta­das:
Épo­pée de la ré­bel­lion de Heiji (Epo­peia da Re­be­lião de Heiji).
La Ch­ro­ni­que des Heigi (A Cró­nica dos Heigi).
Ré­cit de l’ère Heiji (Re­lato da Era Heiji).
Ré­cits de la guerre de l’ère Heiji (Re­la­tos da Guerra da Era Heiji).
Heïdji mo­no­ga­tari.
Heizi mo­no­ga­tari.
, e o mais ilus­tre de to­dos, O Dito dos Heiké (Heiké mo­no­ga­tari)4For­mas re­jei­ta­das:
Le Dit des Heikke (O Dito dos Heikke).
L’A­ven­ture d’Heike (A Aven­tura de Heike).
His­toire des Heike (His­tó­ria dos Heike).
Con­tes du Heike (Con­tos do Heike).
Con­tes des Heike (Con­tos dos Heike).
La Ch­ro­ni­que des Heiké (A Cró­nica dos Heiké).
La Ch­ro­ni­que de Heiké (A Cró­nica de Heiké).
Ch­ro­ni­ques du clan Heike (Cró­ni­cas do Clã Heike).
La Geste de la mai­son des Héï (A Gesta da Casa dos Héï).
Geste de la fa­mille des Hei (Gesta da Fa­mí­lia dos Hei).
His­toire de la fa­mille des Hei (His­tó­ria da Fa­mí­lia dos Hei).
His­toire de la fa­mille Heiké (His­tó­ria da Fa­mí­lia Heiké).
His­toire de la mai­son des Taira (His­tó­ria da Casa dos Taira).
His­toire de la fa­mille des Taïra (His­tó­ria da Fa­mí­lia dos Taïra).
Ré­cit de l’his­toire des Taira (Re­lato da His­tó­ria dos Taira).
Ro­man des Taira (Ro­mance dos Taira).
La Geste des Taïra (A Gesta dos Taïra).
Feike no mo­no­ga­tari.
. Os dois pri­mei­ros, se po­dem pa­re­cer pro­sai­cos ao des­cre­ve­rem como os Taïra e os Mi­na­moto se in­si­nuam pouco a pouco no po­der mi­li­tar até ad­qui­ri­rem uma in­fluên­cia de­ci­siva so­bre os as­sun­tos da cor­te, não dei­xam de pre­pa­rar o drama vin­douro e já en­cer­ram esta «sen­si­bi­li­dade ao efé­me­ro» (mono no aware) que en­con­trará no Dito dos Heiké a sua ex­pres­são mais aca­ba­da:

«O mundo onde vi­ve­mos
Não tem mais exis­tên­cia
Que raio de lua
Que se re­flete na água
Re­co­lhida no oco da mão.»

Le Dit de Hô­gen ; Le Dit de Heiji (O Dito de Hô­gen; O Dito de Heiji), trad. do ja­po­nês por René Si­ef­fert, Pa­ris: Pu­bli­ca­ti­ons ori­en­ta­lis­tes de Fran­ce, 1976; re­ed. La­gras­se: Ver­di­er, col. «Ver­dier po­che», 2007.

A Impermanência como Destino

Obra mo­nu­men­tal, ver­da­deira Eneida das lu­tas in­tes­ti­nas e das guer­ras en­car­ni­ça­das que di­la­ce­ra­ram as duas ca­sas, cul­mi­nando com a ba­ta­lha de Dan-no-ura (25 de abril de 1185), O Dito dos Heiké afas­ta-se no en­tanto ra­di­cal­mente da tra­di­ção oci­den­tal. Em vez de abrir, à ma­neira de Vir­gí­lio, com os arma vi­rum­que (as ar­mas e o ho­mem), a cró­nica ja­po­nesa lem­bra desde a sua pri­meira li­nha «a im­per­ma­nên­cia de to­das as coi­sas»: «O or­gu­lho­so, cer­ta­men­te, não du­ra, nem mais nem me­nos igual ao so­nho de uma noite de pri­ma­vera». As per­so­na­gens, gran­des ou hu­mil­des, são to­das ar­ras­ta­das pelo mesmo tur­bi­lhão, ilus­trando à sa­ci­e­dade que, se­gundo a fór­mula de Bos­su­et:

«Virá o tempo em que este ho­mem que vos pa­re­cia tão grande já não se­rá, em que será como a cri­ança que ainda está por nas­cer, em que não será na­da. […] Vim ape­nas para fa­zer nú­me­ro, ainda as­sim não ha­via ne­ces­si­dade de mim; […] quando olho de per­to, pa­re­ce-me que é um so­nho ver-me aqui, e que tudo o que vejo não são se­não vãos si­mu­la­cros: Præ­te­rit enim fi­gura hu­jus mundi (Pois pas­sa, este mundo tal como o ve­mos)51 Cor 7,31 (A Bí­blia: Tra­du­ção Ofi­cial Li­túr­gica).».

Bos­su­et, Jac­ques Bé­nig­ne, Œu­vres com­plè­tes (Obras Com­ple­tas), t. IV, Pa­ris: Lefè­vre; Fir­min Di­dot frè­res, 1836.

As­sim, O Dito dos Heiké as­se­me­lha-se a uma con­tí­nua pre­ga­ção, onde to­das as vi­cis­si­tu­des da vida dos he­róis ser­vem para ilus­trar esta lei da im­per­ma­nên­cia (mujô) e a vai­dade das gló­rias hu­ma­nas. O caso de Taïra no Ta­da­nori (1144-1184) é a este res­peito exem­plar. Sur­pre­en­dido pelo ini­mi­go, do­mina o seu ad­ver­sá­rio, mas um qual­quer ser­vi­dor deste in­ter­vém e cor­ta-lhe o braço di­reito rente ao co­to­ve­lo. Sa­bendo che­gado o seu fim, Ta­da­nori vol­ta-se para oeste e in­voca com voz fir­me, por dez ve­zes, o Buda an­tes de ser de­ca­pi­ta­do. Preso à sua al­ja­va, en­con­tra-se este po­ema de adeus:

«Ar­ras­tado pe­las tre­vas
Alo­jar-me-ei sob
Os ra­mos de uma ár­vo­re.
Ape­nas as flo­res
Me aco­lhe[­rã]o esta noi­te.»

Hoff­mann, Yo­el, Poè­mes d’a­dieu ja­po­nais : antho­lo­gie com­men­tée de poè­mes écrits au seuil de la mort (Po­e­mas de Adeus Ja­po­ne­ses: An­to­lo­gia Co­men­tada de Po­e­mas Es­cri­tos no Li­miar da Morte), trad. do in­glês por Agnès Ro­zen­blum, Ma­la­koff: A. Co­lin, 2023.

Uma Posteridade em Meios-tons

Esta sen­si­bi­li­dade bú­di­ca, que im­pregna até as ce­nas mais san­gren­tas, não basta no en­tanto sem­pre para ele­var uma nar­ra­ção que pode pa­re­cer len­ta, re­gu­lar, uni­forme aos es­pí­ri­tos for­ma­dos na es­té­tica oci­den­tal. Se­me­lhante ao som do sino de Gi­on, a mar­cha dos di­tos é re­gu­lar, de­ma­si­ado re­gu­lar mes­mo, e um tanto mo­nó­to­na. La­mento que re­la­tos tão ilus­tres não te­nham en­con­trado um po­eta igual­mente ilus­tre que os ti­vesse fi­xado para sem­pre; que lhes te­nha fal­tado um Ho­mero que lhes ti­vesse dado uma va­ri­e­da­de, uma fle­xi­bi­li­dade eter­na­mente ad­mi­ra­das.

Como nota Ge­or­ges Bous­quet, os he­róis ho­mé­ri­cos têm fre­quen­te­mente «ale­grias ou fra­que­zas es­tra­nhas que nos fa­zem to­car com o dedo a sua hu­ma­ni­da­de; os de Taïra não ces­sam ja­mais de ser con­ven­ci­o­nais e frios». En­quanto o in­gé­nuo con­ta­dor grego deixa sem­pre trans­pa­re­cer um vago e fino sor­riso por de­trás das pa­la­vras, «o rap­sodo ja­po­nês nunca aban­dona o tom épico e o porte em­pro­ado». Onde «res­soa como uma fan­farra a ex­pan­são ale­gre do tro­va­dor, ou­ve-se aqui ape­nas o acento me­lan­có­lico do bu­dista de­so­la­do: “O ho­mem va­lo­roso [tam­bém ele] acaba por des­mo­ro­nar-se nem mais nem me­nos que po­eira ao ven­to”».

Mappemonde mettant en évidence le Vietnam.

O Kim-Vân-Kiều, ou a alma vietnamita revelada

Tra­du­zido do fran­cês

Exis­tem obras que tra­zem em si os gos­tos e as as­pi­ra­ções de uma na­ção in­tei­ra, «desde o con­du­tor de ri­quexó até ao mais alto man­da­rim, desde a ven­de­dora am­bu­lante até à mais ilus­tre dama do mundo». Elas per­ma­ne­cem eter­na­mente jo­vens e veem su­ce­der-se no­vas ge­ra­ções de ad­mi­ra­do­res. Tal é o caso do Kim-Vân-Kiều1For­mas re­jei­ta­das:
Kim, Ven, Kièou.
Le Conte de Kiêu (O Conto de Kiêu).
L’His­toire de Kieu (A His­tó­ria de Kieu).
Le Ro­man de Kiều (O Ro­mance de Kiều).
Truyện Kiều.
His­toire de Thuy-Kiêu (His­tó­ria de Thuy-Kiêu).
Truyên Thuy-Kiêu.
L’His­toire de Kim Vân Kiều (A His­tó­ria de Kim Vân Kiều).
Kim Vân Kiều truyện.
Nou­velle His­toire de Kim, Vân et Kiều (Nova His­tó­ria de Kim, Vân e Kiều).
Kim Vân Kiều tân-truyện.
La Nou­velle Voix des cœurs bri­sés (A Nova Voz dos co­ra­ções par­ti­dos).
Nou­veau Chant du des­tin de ma­lheur (Novo Canto do des­tino de des­graça).
Nou­ve­aux Ac­cents de dou­leurs (No­vos Acen­tos de do­res).
Nou­veau Chant d’une des­ti­née ma­lheu­reuse (Novo Canto de um des­tino in­fe­liz).
Nou­veau Chant de souf­france (Novo Canto de so­fri­mento).
Nou­velle Voix des en­trail­les dé­chi­rées (Nova Voz das en­tra­nhas di­la­ce­ra­das).
Nou­ve­aux Ac­cents de la dou­leur (No­vos Acen­tos da dor).
Nou­velle Ver­sion des en­trail­les bri­sées (Nova Ver­são das en­tra­nhas par­ti­das).
Le Cœur bri­sé, nou­velle ver­sion (O Co­ra­ção par­ti­do, nova ver­são).
Đoạn-trường tân-thanh.
, este po­ema de mais de três mil ver­sos que mos­tram a alma vi­et­na­mita em toda a sua de­li­ca­de­za, pu­reza e ab­ne­ga­ção:

«É pre­ciso sus­pen­der a res­pi­ra­ção, é pre­ciso ca­mi­nhar com pre­cau­ção para es­tar em con­di­ções de cap­tar a be­leza do texto [tan­to] ele é gra­ci­oso (dịu dàng), for­moso (thuỳ mị), gran­di­oso (tráng lệ), es­plên­dido (huy hoàng).»

Du­rand, Mau­rice (ed.), Mé­lan­ges sur Nguyễn Du (Mis­ce­lâ­neas so­bre Nguyễn Du), Pa­ris: École fran­çaise d’Ex­trê­me-O­ri­ent, 1966.

O au­tor, Nguyễn Du (1765-1820)2For­mas re­jei­ta­das:
Nguyên Zou.
Nguyên-Zu.
Hguyen-Du.
Não con­fun­dir com:
Nguyễn Dữ (sé­culo XVI), cujo Vasta Com­pi­la­ção de len­das ma­ra­vi­lho­sas é uma crí­tica do seu tempo sob o véu do fan­tás­ti­co.
, dei­xou a re­pu­ta­ção de um ho­mem me­lan­có­lico e ta­ci­tur­no, cujo mu­tismo obs­ti­nado lhe va­leu esta re­pre­en­são do im­pe­ra­dor: «É pre­ciso que, nos con­se­lhos, fa­leis e deis a vossa opi­nião. Por que vos en­cer­rar­des as­sim no si­lên­cio e nunca res­pon­der­des se­não por sim ou por não?» Man­da­rim con­tra a sua von­ta­de, o seu co­ra­ção as­pi­rava ape­nas à qui­e­tude das suas mon­ta­nhas na­tais. Che­gou a amal­di­çoar esse ta­lento mesmo que, ele­van­do-o aos mais al­tos car­gos, o afas­tava de si pró­prio, ao ponto de fa­zer disso a mo­ral fi­nal da sua obra-pri­ma: «Que aque­les que têm ta­lento não se glo­ri­fi­quem por­tanto do seu ta­len­to! A pa­la­vra “tài” [ta­len­to] rima com a pa­la­vra “tai” [des­gra­ça]». Igual a si mes­mo, re­cu­sou qual­quer tra­ta­mento du­rante a do­ença que lhe foi fa­tal e, ao sa­ber que o seu corpo se ge­la­va, aco­lheu a no­tí­cia com um sus­piro de alí­vio. «Bem!», mur­mu­rou, e esta pa­la­vra foi a sua úl­ti­ma.

A Epopeia da dor

O po­ema re­trata o des­tino trá­gico de Kiều, jo­vem de be­leza e ta­lento in­com­pa­rá­veis. Quando um fu­turo ra­di­ante lhe pa­rece pro­me­tido junto do seu pri­meiro amor, Kim, a fa­ta­li­dade bate à sua por­ta: para sal­var o pai e o ir­mão de uma acu­sa­ção iní­qua, ela deve ven­der-se. En­tão, co­meça para ela um pé­ri­plo de quinze anos, du­rante os quais será su­ces­si­va­mente cri­a­da, con­cu­bina e pros­ti­tu­ta, fu­gindo de um in­for­tú­nio para en­con­trar ape­nas ou­tro pi­or. Con­tu­do, tal como o ló­tus que flo­resce so­bre a la­ma, no meio desta ab­je­ção mes­ma, Kiều con­serva «o puro per­fume da sua no­breza ori­gi­nal», gui­ada por uma con­vic­ção ina­ba­lá­vel:

«[…] se um pe­sado karma pesa so­bre o nosso des­ti­no, não re­cri­mi­ne­mos con­tra o céu e não o acu­se­mos de in­jus­ti­ça. A raiz do bem re­side em nós mes­mos.»

Nguyễn, Du, Kim-Vân-Kiêu (Kim-Vân-Kiều), trad. do vi­et­na­mita por Xuân Phúc [Paul Sch­nei­der] e Xuân Viêt [Nghiêm Xuân Việt], Pa­ris: Gal­li­mard/U­NES­CO, 1961.

Entre tradução e criação

Foi du­rante uma em­bai­xada na China que Nguyễn Du des­co­briu o ro­mance que lhe iria ins­pi­rar a sua obra-pri­ma. De uma nar­ra­tiva que se po­de­ria jul­gar ba­nal, soube criar um «po­ema imor­tal / Cu­jos ver­sos são tão do­ces que dei­xam, so­bre o lá­bio, / Quando os can­tá­mos, um sa­bor de mel»3Droin, Al­fred, «Ly-Than-Thong» em La Jon­que vic­to­ri­euse (O Junco vi­to­ri­oso), Pa­ris: E. Fas­quel­le, 1906.. Esta fi­li­a­ção chi­nesa iria, con­tu­do, tor­nar-se uma maçã de dis­cór­dia para o or­gu­lho na­ci­o­nal nas­cen­te. Na efer­ves­cên­cia dos anos 1920-1930, ela ar­mou a crí­tica dos na­ci­o­na­lis­tas mais in­tran­si­gen­tes, dos quais o le­trado Ngô Đức Kế se fez por­ta-voz:

«O Thanh tâm tài nhân [fonte do Kim-Vân-Kiều] não é se­não um ro­mance des­pre­zado na China e eis que agora o Vi­et­name o eleva ao ní­vel de li­vro ca­nó­ni­co, de Bí­blia, é ver­da­dei­ra­mente dar-se uma grande ver­go­nha.»

Phạm, Thị Ngoạn, In­tro­duc­tion au Nam-Phong, 1917-1934 (In­tro­du­ção ao Nam-Phong, 1917-1934), Sai­gão: So­ciété des étu­des in­do­chi­noi­ses, 1973.

Na ver­da­de, para além das suas pas­sa­gens em­pres­ta­das ou li­cen­ci­o­sas, o Kim-Vân-Kiều é an­tes de mais o eco das in­jus­ti­ças so­fri­das pelo povo vi­et­na­mi­ta. «Os can­tos dos al­deões en­si­na­ram-me a fala da juta e da amo­reira / Pran­tos e so­lu­ços nos cam­pos evo­cam guer­ras e lu­tos», es­creve Nguyễn Du num ou­tro po­ema4Tra­ta-se do po­ema «Dia de Pura Cla­re­za» («Thanh minh ngẫu hứng»). A festa da Pura Cla­reza é aquela em que as fa­mí­lias hon­ram os an­te­pas­sa­dos in­do, pelo cam­po, fa­zer a lim­peza dos seus tú­mu­los.. Ao longo de toda a epo­peia apa­rece esta sen­si­bi­li­dade vi­bran­te, fre­quen­te­mente di­la­ce­ran­te, de um po­eta cujo co­ra­ção vi­bra em unís­sono com o so­fri­mento que fer­men­tava con­fu­sa­mente nas mas­sas hu­mil­des, como tes­te­mu­nha esta pas­sa­gem:

«Os jun­cos pres­si­o­na­vam os seus ci­mos iguais ao so­pro rouco da bri­sa. Toda a tris­teza de um céu de ou­tono pa­re­cia re­ser­vada a um único ser [Kiều]. Ao longo das eta­pas no­tur­nas, en­quanto uma cla­ri­dade caía do fir­ma­mento ver­ti­gi­noso e os dis­tan­tes se per­diam num oce­ano de bru­ma, a lua que ela via fa­zi­a-a co­rar das suas ju­ras pe­rante os rios e os mon­tes.»

Nguyễn, Du, Kim-Vân-Kiêu (Kim-Vân-Kiều), trad. do vi­et­na­mita por Xuân Phúc [Paul Sch­nei­der] e Xuân Viêt [Nghiêm Xuân Việt], Pa­ris: Gal­li­mard/U­NES­CO, 1961.

Um espelho para o povo

A for­tuna do Kim-Vân-Kiều foi tal que aban­do­nou o do­mí­nio da li­te­ra­tura para se tor­nar um es­pe­lho no qual cada vi­et­na­mita se re­co­nhe­ce. Uma can­ção po­pu­lar eri­giu as­sim a sua lei­tura em ver­da­deira arte de vi­ver, in­dis­so­ciá­vel dos pra­ze­res do sá­bio: «Para ser ho­mem, é pre­ciso sa­ber jo­gar ao “tổ tôm”5Jogo de car­tas vi­et­na­mita para cinco jo­ga­do­res. Muito em voga na alta so­ci­e­da­de, tem a re­pu­ta­ção de exi­gir muita me­mó­ria e pers­pi­cá­cia., be­ber chá de Yun­nan e de­cla­mar o Kiều» (Làm trai biết đánh tổ tôm, uống trà Mạn hảo, ngâm nôm Thúy Kiều). A su­pers­ti­ção apo­de­rou-se mesmo de­le, fa­zendo do li­vro um orá­cu­lo: nos mo­men­tos de in­cer­te­za, não é raro que se abra ao acaso para pro­cu­rar, nos ver­sos que se apre­sen­tam, uma res­posta do des­ti­no. As­sim, do ga­bi­nete do sá­bio à mo­rada mais mo­des­ta, o po­ema soube tor­nar-se in­dis­pen­sá­vel. É ao le­trado Phạm Quỳnh que de­ve­mos a fór­mu­la, que per­ma­ne­ceu cé­le­bre, que re­sume este sen­ti­men­to:

«Que te­mos nós a te­mer, de que de­ve­mos es­tar in­qui­e­tos? O Kiều per­ma­ne­cen­do, a nossa lín­gua per­ma­ne­ce; a nossa lín­gua per­ma­ne­cen­do, o nosso país sub­sis­te.»

Thái, Bì­nh, «De quel­ques as­pects phi­lo­sophi­ques et re­li­gi­eux du chef-d’œu­vre de la lit­té­ra­ture vi­et­na­mi­en­ne: le Kim-Vân-Kiêu de Nguyễn Du» («­So­bre al­guns as­pe­tos fi­lo­só­fi­cos e re­li­gi­o­sos da obra-prima da li­te­ra­tura vi­et­na­mi­ta: o Kim-Vân-Kiều de Nguyễn Du»), Mes­sage d’Ex­trê­me-O­ri­ent, n.º 1, 1971, p. 25-38; n.º 2, 1971, p. 85-97.

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Na Margem dos Sonhos: Os Espectros de Ueda Akinari

Tra­du­zido do fran­cês

É na mar­gem, fre­quen­te­men­te, que se ani­nham os gé­nios mais sin­gu­la­res. Fi­lho de pai des­co­nhe­cido e de mãe de­ma­si­ado co­nhe­cida — uma cor­tesã do bairro dos pra­ze­res —, Ueda Aki­nari (1734-1809)1For­mas re­jei­ta­das:
Aki­nari Ou­e­da.
Ueda Tô­sa­ku.
Uyeda Aki­na­ri.
viu a sua mãe ape­nas uma vez, quando já era ho­mem feito e es­cri­tor cé­le­bre. Adop­tado por uma fa­mí­lia mer­cante de Osa­ka, a sua exis­tên­cia foi mar­cada por esta ver­go­nha ori­gi­nal so­bre a qual os seus ini­mi­gos não se pri­va­vam de o ata­car: «Os meus ini­mi­gos di­zem de mim: é uma cri­ança de es­ta­la­gem; pior ain­da, é al­gum re­bento de pro­xe­neta fora de ida­de! Ao que res­pon­do: […] em todo o ca­so, sou na mi­nha mon­ta­nha o único ge­ne­ral e não me co­nheço par». A isto jun­ta­va-se uma en­fer­mi­dade nos de­dos2En­fer­mi­dade que os­ten­tará as­si­nando a sua obra-prima com o pseu­dó­nimo de Senshi Ki­jin, isto é, o In­vá­lido dos De­dos De­for­ma­dos. que lhe proi­bia a ca­li­gra­fia per­fei­ta, ori­en­tan­do-o pa­ra­do­xal­men­te, ele o jo­vem or­gu­lhoso pouco in­cli­nado ao ne­gó­cio, para uma busca in­te­lec­tual e li­te­rá­ria obs­ti­na­da. Desta exis­tên­cia con­tur­ba­da, desta sen­si­bi­li­dade em carne vi­va, nas­cerá a sua obra-pri­ma, os Con­tos de Chuva e de Lua (Ugetsu mo­no­ga­tari)3For­mas re­jei­ta­das:
Con­tes des mois de pluie (Con­tos dos Me­ses de Chuva).
Con­tes de la lune va­gue après la pluie (Con­tos da Lua Vaga após a Chuva).
Con­tes de la lune et de la pluie (Con­tos da Lua e da Chuva).
Con­tes de pluies et de lune (Con­tos de Chu­vas e de Lua).
Con­tes de la lune des pluies (Con­tos da Lua das Chu­vas).
Con­tes de lune et de pluie (Con­tos de Lua e de Chuva).
Con­tes du clair de lune et de la pluie (Con­tos do Luar e da Chuva).
Ue­gutsu mo­no­ga­tari.
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Das Fontes e dos Sonhos

Pu­bli­ca­dos em 1776, es­tes nove re­la­tos fan­tás­ti­cos mar­cam uma vi­ra­gem na li­te­ra­tura da época de Edo. Aki­na­ri, rom­pendo com os «re­la­tos do mundo flu­tu­ante», gé­nero frí­volo en­tão em vo­ga, inau­gura a ma­neira do yomihon, ou «li­vro de lei­tura», que visa um pú­blico cul­to, ao qual ofe­rece um es­paço de so­nho e de eva­são. A ori­gi­na­li­dade da sua abor­da­gem re­side numa sín­tese ma­gis­tral en­tre as tra­di­ções nar­ra­ti­vas chi­ne­sas e o pa­tri­mó­nio li­te­rá­rio ja­po­nês. Se bebe abun­dan­te­mente nas co­lec­tâ­neas de con­tos fan­tás­ti­cos das di­nas­tias Ming e Qing, como os Con­tos ao Apa­gar a Vela (Ji­an­deng xi­nhua), nunca se con­tenta com uma sim­ples tra­du­ção ou uma adap­ta­ção ser­vil. Cada re­lato é in­tei­ra­mente ja­po­ni­za­do, trans­posto para um qua­dro his­tó­rico e ge­o­grá­fico na­ci­o­nal e, so­bre­tu­do, trans­fi­gu­rado por uma me­lan­co­lia úni­ca.

Às fon­tes con­ti­nen­tais, Aki­nari mis­tura com uma arte con­su­mada as re­mi­nis­cên­cias da li­te­ra­tura clás­sica do seu país. A in­fluên­cia do te­a­tro é em toda a parte sen­sí­vel, não ape­nas nos ges­tos e nas fi­si­o­no­mias — es­pí­ri­tos vin­ga­do­res, fan­tas­mas de guer­rei­ros, apai­xo­na­das per­di­das —, mas tam­bém na pró­pria com­po­si­ção dos con­tos, que ge­rem sa­bi­a­mente o afas­ta­mento do mundo e a pro­gres­são dra­má­tica até à apa­ri­ção do so­bre­na­tu­ral. Do mesmo mo­do, a prosa ele­gante e flo­rida (gabun) é uma vi­brante ho­me­na­gem à idade de ouro da época de Hei­an, e par­ti­cu­lar­mente ao Ro­mance de Genji (Genji mo­no­ga­tari).

Uma Humanidade Fantasmagórica

O que im­pres­si­ona nos Con­tos de Chuva e de Lua é que o mundo dos es­pí­ri­tos nunca está com­ple­ta­mente se­pa­rado do dos vi­vos. Longe de se­rem sim­ples mons­tros, os fan­tas­mas de Aki­nari são do­ta­dos de uma per­so­na­li­dade com­ple­xa, fre­quen­te­mente mais rica e mais ori­gi­nal que a dos hu­ma­nos que vêm as­som­brar. As suas apa­ri­ções são mo­ti­va­das por sen­ti­men­tos po­de­ro­sa­mente hu­ma­nos: a fi­de­li­dade até para além da mor­te, o amor ul­tra­ja­do, o ciúme de­vo­ra­dor ou o ódio inex­tin­guí­vel. O es­pec­tro é fre­quen­te­mente ape­nas o pro­lon­ga­mento de uma pai­xão que não pôde sa­ci­ar-se ou apa­zi­guar-se no mundo ter­res­tre. A sua voz, vinda de além-tú­mu­lo, fa­la-nos com uma per­tur­bante mo­der­ni­dade de nós mes­mos.

As­sim de Miya­gi, a es­posa aban­do­nada que, em A Casa nos Jun­cos, es­pera sete anos o re­gresso do seu ma­rido par­tido para fa­zer for­tu­na. Morta de exaus­tão e de des­gos­to, apa­re­ce-lhe uma úl­tima noite an­tes de não ser mais que um mon­tí­culo fu­ne­rá­rio so­bre o qual se en­con­tra este po­ema di­la­ce­ran­te:

«As­sim era,
Eu sa­bi­a-o e con­tudo o meu co­ra­ção
Em­ba­la­va-se em ilu­sões:
Neste mun­do, até este dia,
Era en­tão esta a vida que vi­vi?»

Ue­da, Aki­na­ri. Con­tes de pluie et de lune (Con­tos de Chuva e de Lua) (Ugetsu mo­no­ga­tari), trad. do ja­po­nês por René Si­ef­fert. Pa­ris: Gal­li­mard, col. «Con­nais­sance de l’O­ri­ent. Sé­rie ja­po­nai­se», 1956.

O fan­tás­tico em Aki­nari não é por­tanto um sim­ples me­ca­nismo do ter­ror; é o es­pe­lho am­pli­a­dor dos tor­men­tos da al­ma. Os es­pec­tros vêm lem­brar aos vi­vos as suas fa­lhas, a con­sequên­cia mo­ral dos seus ac­tos. A vin­gança de uma es­posa traída ou a le­al­dade de um amigo que se mata para cum­prir a sua pro­messa são ou­tras tan­tas pa­rá­bo­las so­bre a força dos com­pro­mis­sos e a fa­ta­li­dade das pai­xões.

O Cinzelador de Quimeras

O es­tilo de Aki­nari é sem dú­vida o que con­fere à obra a sua pe­re­ni­da­de. Alia a no­breza da lín­gua clás­sica a um sen­tido do ritmo her­dado do , cri­ando uma mú­sica sin­gu­lar que en­fei­tiça o lei­tor. O pró­prio tí­tu­lo, Ugetsu, «chuva e lua», tra­duz esta me­lo­dia en­can­ta­dora numa ima­gem — a de um luar que se turva ao mur­mú­rio de uma chuva fi­na, ins­tau­rando um qua­dro ideal às ma­ni­fes­ta­ções do so­bre­na­tu­ral, um mundo es­pec­tral onde as fron­tei­ras en­tre o so­nho e a re­a­li­dade se es­fu­mam.

Ar­tista in­de­pen­den­te, Aki­nari le­vou quase dez anos a po­lir a sua obra-pri­ma, si­nal da im­por­tân­cia que lhe atri­buía. Uma in­de­pen­dên­cia in­te­lec­tual que se ma­ni­fes­tou igual­mente nas suas vi­ru­len­tas po­lé­mi­cas com o ou­tro grande le­trado do seu tem­po, Mo­to­ori No­ri­na­ga, na­ci­o­na­lista avant la let­tre. En­quanto este úl­timo eri­gia os mi­tos an­ces­trais do Ja­pão em «única ver­dade», Aki­nari es­car­ne­cia deste ideal afir­mando que «em qual­quer país, o es­pí­rito da na­ção é o seu fe­dor». As­sim, este fi­lho de cor­tesã sou­be, pela força única da sua ar­te, im­por-se como uma fi­gura cen­tral, um «anar­quista per­feito»4A ex­pres­são é de Al­fred Jarry a pro­pó­sito de Ubu, mas po­de­ria, por uma ana­lo­gia ou­sa­da, qua­li­fi­car o es­pí­rito de com­pleta in­de­pen­dên­cia de Aki­na­ri. que, brin­cando com as con­ven­ções, ele­vou o conto fan­tás­tico a um grau de re­fi­na­mento ini­gua­la­do. As suas sin­gu­la­ri­da­des, que pro­vi­nham de uma co­ra­gem par­ti­cu­lar numa so­ci­e­dade ja­po­nesa que eri­gia a con­for­mi­dade em vir­tude su­pre­ma, não dei­xa­ram de fas­ci­nar Yu­kio Mishi­ma, que con­fessa em O Ja­pão mo­derno e a Ética sa­mu­rai (Ha­ga­kuré nyū­mon) ter le­vado con­sigo a obra de Aki­nari «du­rante os bom­bar­de­a­men­tos» e ad­mi­rado so­bre­tudo o seu «ana­cro­nismo de­li­be­rado». Os Con­tos de Chuva e de Lua não são ape­nas uma an­to­lo­gia do gé­ne­ro; são uma ima­gem rein­ven­tada da nar­ra­tiva à ja­po­ne­sa, onde o ma­ra­vi­lhoso e o ma­ca­bro dis­pu­tam com a po­e­sia mais de­li­ca­da, dei­xando o lei­tor sob o en­canto du­ra­douro de um so­nho es­tra­nho e mag­ní­fi­co.

Mappemonde mettant en évidence l’Iran et la France.

De Ispaão a Ménilmontant: O Itinerário de Ali Erfan

Tra­du­zido do fran­cês

O Ori­en­te, com os seus mis­té­rios e os seus tor­men­tos, sem­pre ali­men­tou o ima­gi­ná­rio oci­den­tal. Mas que sa­be­mos re­al­mente da Pér­sia con­tem­po­râ­nea, dessa terra de po­e­sia que se tor­nou o te­a­tro de uma re­vo­lu­ção que per­tur­bou a or­dem do mun­do? É uma ja­nela so­bre este Irão im­preg­nado de con­tra­di­ções que nos abre a obra de Ali Er­fan, es­cri­tor e ci­ne­asta1Cineasta: Um epi­só­dio ilus­tra as ame­a­ças di­re­tas que pe­sa­ram so­bre o ar­tista e pre­ci­pi­ta­ram o seu exí­lio. Quando o seu se­gundo filme foi pro­je­tado no Irão, o mi­nis­tro da Cul­tu­ra, pre­sente na sa­la, de­cla­rou no fim: «O único muro branco so­bre o qual ainda não se ver­teu o san­gue dos im­pu­ros, é o ecrã de ci­ne­ma. Se exe­cu­tar­mos este trai­dor e esse ecrã fi­car ver­me­lho, to­dos os ci­ne­as­tas com­pre­en­de­rão que não se pode brin­car com os in­te­res­ses do povo mu­çul­mano». nas­cido em Is­paão em 1946, e for­çado ao exí­lio em França desde 1981. A sua obra, es­crita numa lín­gua fran­cesa que fez sua, é um tes­te­mu­nho co­mo­vente e de rara fi­neza so­bre a tra­gé­dia de um povo e a con­di­ção do exi­la­do.

A Escrita como resistência

Na sua arte de son­dar as al­mas ator­men­ta­das pela ti­ra­nia e pelo ab­surdo do fa­na­tis­mo, mui­tos são os que veem em Ali Er­fan o digno her­deiro do grande Sa­degh He­dayat2Sa­degh He­dayat: Pai das le­tras ira­ni­a­nas mo­der­nas, en­ter­rado no Pè­re-La­chai­se, em Pa­ris.. A sua es­cri­ta, de uma cru­eza im­pla­cá­vel, mer­gu­lha-nos num uni­verso som­brio e opres­si­vo, quase kaf­ki­ano — o de uma so­ci­e­dade en­tre­gue ao ter­ror ins­tau­rado pela «fi­lo­so­fia alu­ci­nada dos imãs»: se­jam as mu­lhe­res per­se­gui­das de Ma femme est une sainte (A mi­nha mu­lher é uma san­ta), os ar­tis­tas opri­mi­dos de Le Der­nier Poète du monde (O Úl­timo Po­eta do mun­do) ou as fi­gu­ras mal­di­tas de Les Dam­nées du pa­ra­dis (As Da­na­das do pa­raí­so). A morte que im­pregna es­tes re­la­tos não é ape­nas a da vi­o­lên­cia, mas a do Es­tado to­ta­li­tá­rio que a en­gen­dra, esse edi­fí­cio que, para se er­guer, ne­ces­sita de um ci­mento de cor­pos. É esse mesmo ci­mento que en­con­tra­mos em Sans om­bre (Sem som­bra), um tes­te­mu­nho po­de­roso so­bre a guerra Irão-I­ra­que, esse «es­pan­toso os­sá­rio», com­pa­rá­vel às ba­ta­lhas de trin­chei­ras da Grande Guer­ra, que be­beu o san­gue de cen­te­nas de mi­lha­res de ho­mens:

«Ha­via tam­bém vo­lun­tá­rios que, com a ideia de mor­rer, es­ca­va­vam o solo para fa­zer bu­ra­cos como tú­mu­los, a que cha­ma­vam “câ­mara nup­cial para os apai­xo­na­dos de Deus”.

Mas pouco im­por­tava o sen­tido que cada um dava à sua mo­rada pas­sa­gei­ra; de­via ca­var o seu bu­raco na di­re­ção de Meca e não em fun­ção do ini­migo que es­tava em fren­te.»

Er­fan, Ali. Sans om­bre (Sem som­bra), La Tour-d’Ai­gues: Édi­ti­ons de l’Au­be, col. «Re­gards croi­sés», 2017.

Se Ali Er­fan não tem a ale­gria de crer, é esse o seu de­fei­to, ou an­tes o seu in­for­tú­nio. Mas este in­for­tú­nio de­ve-se a uma causa muito gra­ve, quero di­zer os cri­mes que viu co­me­ter em nome de uma re­li­gião cu­jos pre­cei­tos fo­ram des­na­tu­ra­dos e des­vi­a­dos do seu ver­da­deiro sig­ni­fi­ca­do, a fé tor­nan­do-se lou­cu­ra:

«Abriu sem pressa um dos es­pes­sos dos­si­ês, re­ti­rou uma fo­lha, exa­mi­nou-a, e de re­pente ex­cla­mou:

— Fe­chem esta mu­lher num saco de ju­ta, e ati­rem-lhe pe­dras até que morra como um cão. […]

E con­ti­nu­ou, re­pe­tindo o mesmo ges­to, ba­lan­çando o es­crito da­quele que ti­nha vi­a­jado para Deus, pe­gando nou­tro […]. Le­van­tou-se brus­ca­men­te, de pé so­bre a me­sa, e gri­tou como um lou­co:

— Que o pai es­tran­gule o fi­lho com as pró­prias mãos…»

Er­fan, Ali. Le Der­nier Poète du monde (O Úl­timo Po­eta do mun­do), trad. do persa pelo au­tor e Mi­chèle Cris­to­fa­ri, La Tour-d’Ai­gues: Édi­ti­ons de l’Au­be, col. «L’Aube po­che», 1990.

Do exílio e da memória

O exí­lio é uma fe­rida que nunca se fe­cha com­ple­ta­men­te. Em Adieu Mé­nil­mon­tant (A­deus Mé­nil­mon­tant), Ali Er­fan deixa por um tempo a sua Pér­sia na­tal para nos fa­lar da Fran­ça, a sua terra de aco­lhi­men­to. O ro­mance é uma ho­me­na­gem à rue de Mé­nil­mon­tant, esse bairro cos­mo­po­lita de Pa­ris onde vi­veu e exer­ceu o ofí­cio de fo­tó­gra­fo. É uma cró­nica terna e por ve­zes cruel da vida dos «per­di­dos do mundo», des­ses pá­rias da vida que, como ele, nau­fra­ga­ram neste re­fú­gio. No en­tan­to, mesmo em Fran­ça, o Irão nunca está lon­ge. Os odo­res, os sons, os ros­tos, tudo re­corda o Ori­ente per­di­do. Uma me­mó­ria que, para lu­tar con­tra o es­que­ci­men­to, se­le­ci­ona do pas­sado os tra­ços mais sa­li­en­tes.

Cada vez que em­pre­ende es­cre­ver, Ali Er­fan pro­cura o tempo da sua pri­meira ju­ven­tu­de. Sa­bo­reia o êx­tase da re­cor­da­ção, o pra­zer de re­en­con­trar as coi­sas per­di­das e es­que­ci­das na lín­gua na­tal. E, como esta me­mó­ria re­en­con­trada não conta fi­el­mente o que se pas­sou, é ela o ver­da­deiro es­cri­tor; e Ali Er­fan é o seu pri­meiro lei­tor:

«Ago­ra, co­nheço a sua lín­gua [o fran­cês]. Mas não quero fa­lar. […] A se­nhora diz: “Meu que­ri­do, diz: jas­mim”. Não que­ro. Quero pro­nun­ciar o nome da flor que es­tava na nossa ca­sa. Como se cha­ma­va? Por­que é que não me lem­bro? Aquela grande flor que cres­cia ao canto do pá­tio. Que su­bia, que gi­ra­va. Tre­pava por cima da porta da nossa ca­sa, e caía na rua. […] Como se cha­ma­va? Chei­rava bem. A se­nhora diz ain­da: “Diz, meu que­ri­do”. Eu cho­ro, eu cho­ro…»

Er­fan, Ali. Le Der­nier Poète du monde (O Úl­timo Po­eta do mun­do), trad. do persa pelo au­tor e Mi­chèle Cris­to­fa­ri, La Tour-d’Ai­gues: Édi­ti­ons de l’Au­be, col. «L’Aube po­che», 1990.

A obra de Ali Er­fan, ao mesmo tempo sin­gu­lar e uni­ver­sal, mer­gu­lha-nos num Ori­ente opres­si­vo, onde pesa a capa de chumbo de uma te­o­cra­cia ten­ta­cu­lar. Cer­ta­men­te, po­der-se-ia te­mer que o es­cri­tor do exí­lio sir­va, ape­sar de si mes­mo, ape­nas para ali­men­tar os cli­chés da « is­la­mo­fo­bia oci­den­tal » — uma tese no cen­tro de « A li­te­ra­tura de exí­lio é uma li­te­ra­tura me­nor? » de Hes­sam Nogh­reh­chi. Mas quem não visse esse lado das coi­sas per­de­ria o es­sen­ci­al; pois desde sem­pre, a cul­tura persa fez da se­pa­ra­ção e do exí­lio a fonte do seu canto mais pu­ro. Esta é a li­ção da flauta de Rûmî, cuja mú­sica su­blime nasce da sua haste ar­ran­cada ao seu jun­cal na­tal: « Es­cuta a flauta de bambu con­tar uma his­tó­ria; ela la­men­ta-se da se­pa­ra­ção: “Desde que me cor­ta­ram do jun­cal, a mi­nha queixa faz ge­mer o ho­mem e a mu­lher” ». A voz de Ali Er­fan, como a dessa flau­ta, não nasce por­tanto apesar da fis­su­ra, mas sim por ela, trans­mu­tando a bru­ta­li­dade do real numa co­mo­vente me­lo­peia.

Mappemonde mettant en évidence le Sénégal, la France, le Cameroun et la Guinée.

Coups de pi­lon de David Diop, ou o Verbo feito carne e cólera

Tra­du­zido do fran­cês

A obra de Da­vid Diop (1927-1960)1For­mas re­jei­ta­das:
Da­vid Man­dessi Di­op.
Da­vid Léon Man­dessi Di­op.
Da­vid Diop Men­des­si.
Da­vid Mam­bessi Di­op.
Não con­fun­dir com:
Da­vid Diop (1966-…), es­cri­tor e uni­ver­si­tá­rio, lau­re­ado com o pré­mio Gon­court dos li­ceus em 2018 pelo seu ro­mance Frère d’âme (Ir­mão de al­ma).
, tão breve quanto ful­gu­ran­te, per­ma­nece um dos tes­te­mu­nhos mais im­pres­si­o­nan­tes da po­e­sia da ne­gri­tude mi­li­tan­te. A sua única co­le­tâ­nea, Coups de pi­lon (Gol­pes de pi­lão) (1956), res­soa com uma força in­tac­ta, mar­te­lando as cons­ci­ên­cias e ce­le­brando a es­pe­rança in­de­fe­tí­vel de uma África de pé. Nas­cido em Bor­déus de pai se­ne­ga­lês e mãe ca­ma­ro­ne­sa, Diop vi­veu a África me­nos atra­vés da ex­pe­ri­ên­cia de uma es­ta­dia pro­lon­gada do que atra­vés do so­nho e da he­ran­ça, o que nada re­tira à po­tên­cia de um verbo que soube fa­zer-se eco dos so­fri­men­tos e das re­vol­tas de todo um con­ti­nen­te.

Uma poesia da revolta

A po­e­sia de Diop é an­tes de mais um gri­to. Um grito de re­cusa face à ini­qui­dade co­lo­ni­al, um grito de dor face à hu­mi­lha­ção do seu po­vo. Num es­tilo di­re­to, des­po­jado de todo o or­na­mento su­pér­fluo, o po­eta pro­fere as suas ver­da­des como tan­tos “gol­pes de pi­lão” des­ti­na­dos, se­gundo os seus pró­prios ter­mos, a “fu­rar os tím­pa­nos da­que­les que não o que­rem ou­vir e es­ta­lar como gol­pes de chi­cote so­bre os egoís­mos e os con­for­mis­mos da or­dem”. Cada po­ema é um re­qui­si­tó­rio que faz o ba­lanço san­grento da era tu­te­lar. As­sim, em “Les Vau­tours” (Os Abu­tres), de­nun­cia a hi­po­cri­sia da mis­são ci­vi­li­za­do­ra:

Na­quele tempo
A gol­pes de ber­ros de ci­vi­li­za­ção
A gol­pes de água benta nas fron­tes do­mes­ti­ca­das
Os abu­tres cons­truíam à som­bra das suas gar­ras
O san­grento mo­nu­mento da era tu­te­lar.

Di­op, Da­vid, Coups de pi­lon (Gol­pes de pi­lão), Pa­ris: Pré­sence afri­cai­ne, 1973.

A vi­o­lên­cia é om­ni­pre­sen­te, não ape­nas na te­má­ti­ca, mas no pró­prio ritmo da fra­se, só­bria e cor­tante como uma lâ­mi­na. O cé­le­bre e la­có­nico po­ema “Le Temps du Marty­re” (O Tempo do Mar­tí­rio) é a sua ilus­tra­ção mais pun­gen­te, ver­da­deira li­ta­nia da de­sa­pro­pri­a­ção e do crime co­lo­ni­al: “O Branco ma­tou o meu pai / Por­que o meu pai era or­gu­lhoso / O Branco vi­o­lou a mi­nha mãe / Por­que a mi­nha mãe era bela”. Es­tes ver­sos sem ar­ti­fí­ci­os, que dão ao texto a sua força per­cu­tan­te, pu­de­ram des­con­cer­tar cer­tos crí­ti­cos. Sana Ca­mara vê ne­les, por exem­plo, uma “sim­pli­ci­dade do es­tilo que roça a po­bre­za, mesmo se o po­eta tenta ca­ti­var-nos pela iro­nia dos acon­te­ci­men­tos”. No en­tan­to, é sem dú­vida nesta eco­no­mia de mei­os, nesta re­cusa do ar­ti­fí­cio, que a bru­ta­li­dade do pro­pó­sito atinge o seu pa­ro­xis­mo.

A África no coração do verbo

Se a re­volta é o mo­tor da sua es­cri­ta, a África é a sua al­ma. Ela é essa ter­ra-mãe ide­a­li­za­da, en­tre­vista atra­vés do prisma da nos­tal­gia e do so­nho. A após­trofe li­mi­nar do po­ema “A­fri­que” (Á­fri­ca) — “Áfri­ca, mi­nha África” — é uma de­cla­ra­ção de per­tença e de fi­li­a­ção. Esta Áfri­ca, con­fessa nunca a ter “conhecido”, mas o seu olhar está “cheio do teu san­gue”. Ela é al­ter­na­da­mente a mãe amante e ul­tra­ja­da, a dan­ça­rina de corpo de “pi­menta ne­gra”, e a mu­lher ama­da, Rama Kam, cuja be­leza sen­sual é uma ce­le­bra­ção de toda a ra­ça.

É nesta África so­nhada que o po­eta ex­trai a força da es­pe­ran­ça. Ao de­ses­pero que lhe ins­pira as “cos­tas que se cur­vam / E se dei­tam sob o peso da hu­mil­dade”, uma voz res­pon­de, pro­fé­ti­ca:

Fi­lho im­pe­tu­o­so, esta ár­vore ro­busta e jo­vem
Esta ár­vore ali
Es­plen­di­da­mente só no meio de flo­res bran­cas e fa­na­das
É a Áfri­ca, a tua África que re­brota
Que re­brota pa­ci­en­te­mente obs­ti­na­da­mente
E cu­jos fru­tos têm pouco a pouco
O sa­bor amargo da li­ber­da­de.

Di­op, Da­vid, Coups de pi­lon (Gol­pes de pi­lão), Pa­ris: Pré­sence afri­cai­ne, 1973.

Um humanismo militante

Re­du­zir a obra de Diop a um “ra­cismo an­tir­ra­cista2Sar­tre, Je­an-Paul, “Orphée noir” (Or­feu ne­gro), pre­fá­cio à l’Antho­lo­gie de la nou­velle poé­sie nè­gre et mal­ga­che de lan­gue fran­çaise (An­to­lo­gia da nova po­e­sia ne­gra e mal­gaxe de lín­gua fran­ce­sa) de L. S. Senghor, Pa­ris: Pres­ses uni­ver­si­tai­res de Fran­ce, 1948., para re­to­mar a fór­mula de Sar­tre, se­ria des­co­nhe­cer o seu al­cance uni­ver­sal. Se a de­nún­cia da opres­são do Ne­gro é o ponto de par­ti­da, o com­bate de Diop abraça to­dos os con­de­na­dos da ter­ra. A sua po­e­sia é um cla­mor que se eleva “de África às Amé­ri­cas” e a sua so­li­da­ri­e­dade es­ten­de-se ao “es­ti­va­dor de Suez e ao cule de Ha­nói”, ao “vi­et­na­mita dei­tado no ar­ro­zal” e ao “for­çado do Congo ir­mão do lin­chado de Atlanta”.

Esta fra­ter­ni­dade no so­fri­mento e na luta é a marca de um hu­ma­nismo pro­fun­do. O po­eta não se con­tenta em amal­di­ço­ar, ele apela à ação co­le­ti­va, à re­cusa unâ­nime en­car­nada pela in­jun­ção fi­nal de “Défi à la for­ce” (De­sa­fio à for­ça): “Le­van­ta-te e gri­ta: NÃO!”. Por­que, em de­fi­ni­ti­vo, para além da vi­o­lên­cia do ver­bo, o canto de Da­vid Diop é “gui­ado ape­nas pelo amor”, o amor de uma África li­vre no seio de uma hu­ma­ni­dade re­con­ci­li­a­da.

A obra de Da­vid Di­op, cei­fada em pleno de­sen­vol­vi­mento por uma morte trá­gica que nos pri­vou dos seus ma­nus­cri­tos vin­dou­ros, con­serva uma atu­a­li­dade ar­den­te. Léo­pold Sé­dar Senghor, seu an­tigo pro­fes­sor, es­pe­rava que com a ida­de, o po­eta fosse “humanizando-se”. Po­de­mos afir­mar que este hu­ma­nismo já es­tava no co­ra­ção da sua re­vol­ta. Coups de pi­lon (Gol­pes de pi­lão) per­ma­nece um texto es­sen­ci­al, uma obra clás­sica da po­e­sia afri­ca­na, um viá­tico para to­das as ju­ven­tu­des ávi­das de jus­tiça e de li­ber­da­de.

«É já muito para uma obra no fim de con­tas bas­tante res­tri­ta, para uma pri­meira e — in­fe­liz­mente — úl­tima obra. Mas há tex­tos que vão ao fundo das coi­sas e fa­lam ao ser in­tei­ro. Lí­ri­ca, sen­ti­men­tal, ex­pres­são de uma exi­gên­cia e de uma có­lera pes­so­al, esta po­e­sia “lan­çada grave ao as­salto das qui­me­ras” […] é bem da­que­las que, eter­na­men­te, para pla­giar Cé­sai­re, de­sa­fi­a­rão “os la­caios da or­dem” [isto é, os agen­tes de re­pres­são], da­que­las que […] sem­pre obs­ti­na­da­men­te, lem­bra­rão que “a obra do ho­mem ape­nas co­me­çou”, que a fe­li­ci­dade está sem­pre por con­quis­tar, mais bela e mais for­te.»

So­ciété afri­caine de cul­ture (dir.), Da­vid Di­op, 1927-1960 : té­moig­na­ges, étu­des (Da­vid Di­op, 1927-1960: tes­te­mu­nhos, es­tu­dos), Pa­ris: Pré­sence afri­cai­ne, 1983.